Dia de Folga
“… e todas as coisas se vão.
A jornada acabou.
Amor a todos,
Martin.”
— Enfim — disse o rapaz largando a caneta e espreguiçando-se na cadeira, os braços para o alto, os dedos cruzados.
— Chegou a hora.
Ele curvou-se sobre a mesa e envolveu o revólver negro na mão direita. A arma era pesada e ele sentiu-se bem ao segurá-la. Endireitou-se, relaxou os ombros e soltou um suspiro que movimentou a folha amarelada em cima da mesa. Pela janela ele podia ver a chuva metralhando o jardim. O barulho ensurdecedor da água batendo no vidro lhe dava a certeza de que aquela era a noite certa. Os trovões gritavam a plenos pulmões em meio à noite fria.
Ele armou o cão do revólver e levou o cano até a têmpora. Fechou os olhos. A mão não tremia. O dedo no gatilho, sim.
O estrondo pareceu tremer a casa e foi seguido por um clarão que iluminou o ambiente.
— Ei, garoto — disse uma voz sobrepondo o jogo de trovões que continuava no céu — O que diabos você acha que está fazendo?
O rapaz abriu os olhos e deixou escapar um grito tão alto quanto o trovão que havia feito a casa tremer há pouco. Do outro lado de sua mesa, sob a janela, uma figura comprida lhe encarava. O rosto estava escondido na escuridão, e o corpo era iluminado pelos flashes dos relâmpagos.
— Quem é você? — gritou o rapaz, apontando o revólver para a figura estática.
A figura guardou as mãos nos bolsos da calça social e deu um passo à frente, revelando um rosto arquitetado em mandíbulas quadradas e coberto por um topete loiro, quase branco.
— Não se mexe! — gritou o rapaz, ficando de pé. O revólver tremendo em direção ao homem.
— Eu sou a Morte — disse o homem, e então deu mais um passo à frente.
O som do tiro foi seguido pelo estouro do vidro da janela. Um sopro gelado e furioso de vento adentrou a sala. O homem olhou para o buraco na janela e então de volta para o rapaz.
— Caramba, agora é capaz de você ficar gripado, garoto. Bom, não que isso importe muito, levando em consideração a carta e tudo o mais, né?
Ele pensou em atirar de novo e grudou-se a esse pensamento, mas simplesmente não o fez. Não parecia haver sentido em mais um tiro.
— Agora que já fomos apresentados… — disse o homem que era a Morte, aproximando-se e sentando-se na mesa, os pés balançando no ar. E então: — … me diga o que diabos você estava fazendo?
O rapaz baixou a arma e limpou a garganta. Enquanto esperava, a Morte puxou um cigarro do bolso da camisa e um isqueiro do bolso de trás.
— E-Eu, eu ia, bem…
Chk, chk, chk, fazia o isqueiro em meio à frase do rapaz.
— Eu ia me matar.
O isqueiro ascendeu o cigarro e a Morte levou-o à boca.
— Uhum…
— Você é mesmo… a Morte?
O homem expeliu a fumaça para o alto.
— Você esperava a Eva Green de batom roxo num vestido longo, negro e decotado? Sinto muito, garoto.
— O quê?
— Sim, Martin. Eu sou a Morte. Uma delas, pelo menos.
— Mas se você é a Morte… — começou o rapaz, molhando os lábios — e se você está aqui — ele largou o revólver em cima da mesa e arregalou os olhos para o homem — então quer dizer que…
O homem pegou o revólver pelo cano e martelou a mão esquerda do rapaz com o cabo da arma.
— Argh! — gemeu o garoto puxando a mão esquerda para perto de si e esfregando-a com a direita.
— Quer dizer que eu cheguei antes de você fazer merda. Só isso.
O rapaz aproximou-se da mesa novamente e tocou a carta que escrevera há pouco.
— Você já sentiu, alguma vez, que queria ir, e, ao mesmo tempo, que queria ficar? — recitou a Morte admirando a fumaça expelida de seus pulmões.
— É um bom pensamento, garoto — comentou.
— É de uma música…
— Eu sei. O que é que não é?
O homem, que era a Morte, virou-se na cadeira e arremessou o restante do cigarro para fora da janela com um disparo certeiro do dedo indicador.
— Você já sentiu a confusão que é ter tudo mas não querer nada? — continuou recitando a Morte. — Às vezes…
— Você veio me salvar? — interrompeu o jovem.
— Não — respondeu o homem, cruzando as pernas e encarando o teto da casa — não tem o porquê de uma salvação. É o maldito século vinte e um e as pessoas ainda acham que a morte é uma coisa ruim…
— Bem, eu meio que esta-
— Eu achei que já teríamos passado dessa fase, sabe? Que vocês já teriam entendido e se conformado e et cetera…
— Sim, inclusive eu-
— Mas não, vocês continuam com medo, continuam sem entender a oportunidade que lhes é dada, o presente que-
— Eu não tenho medo — disse o rapaz para si mesmo.
O homem, que era a Morte, voltou sua atenção para a o garoto, virando a cabeça para ele.
— Não, — disse a Morte — você realmente não tem. Posso sentir. Você ia mesmo fazer isso, não ia?
— Sim. E ainda pretendo.
— Você não pode fazer isso — disse a Morte, levando a mão ao queixo e correndo os dedos pela rala barba que ameaçava nascer.
— Por que não? Você por acaso vai tocar na minha mente e me mostrar o meu futuro brilhante, os dias de glória e felicidade que tenho pela frente, todos os motivos pra que eu continue preso a essa vidinha sem propósito?
O rapaz mal pôde ver, mas o homem descarregou a mão aberta sobre a mesa de madeira produzindo um estouro seco. Lampejos e clarões invadiram a sala pela janela, acompanhados de uma sequência de trovões. À sua frente, a Morte parava de pé: os olhos, cinza como chumbo, arregalados; a mão esquerda ainda grudada à mesa.
— Você acha que isso é algum tipo de brincadeira? — disse a Morte. Sua voz não saía da boca do homem, mas sim das paredes da casa, do vento que soprava pela janela, dos trovões e da chuva lá fora. Ela não tinha entonação. Não era grave, nem aguda. Não era rouca, nem suave. Ela não tinha vida.
Afundado na cadeira e com as mãos agarradas ao assento como se sua vida dependesse disso, o rapaz apenas ofegava. Soltou alguns murmúrios, mas não conseguiu responder.
— Você não faz a mínima ideia do sistema que envolve a morte de uma pessoa, garoto. Nenhum de vocês, Precoces, faz. Não enquanto ela não chega, ao menos. E não é você, garoto Martin que tem tudo mas não quer nada, que quer tanto ir mas que também quer ficar, quem vai quebrar esse sistema, hoje à noite. Hoje à noite, você vive. Hoje à noite, você aguenta mais uma vez. Você permanece.
Do lado de fora, os trovões começavam a diminuir e já soavam distantes. A chuva perdia força e aos poucos transformava-se em uma garoa lenta.
O homem recolheu a mão da mesa e virou-se de costas para o rapaz, em direção à janela quebrada.
— Mas… E-Eu tenho o direito! Eu posso fazer o que eu quiser da minha vida — disse o rapaz ficando de pé e empurrando sua cadeira para trás.
— Exatamente, garoto — disse o homem, sua voz de volta ao normal. — Faça o que quiser da sua vida. Faça tudo. Faça algo. A vida é sua. Mas a sua morte é minha. Não pense que você pode decidir o que fazer com ela.
O homem, que também era a Morte, caminhou até parar de frente para a janela. Uma corrente de vento gelada começou a soprar com força para dentro da casa. Ali a Morte ficou, os olhos longe, observando a noite.
O rapaz parava de boca aberta, sem acreditar direito no que estava acontecendo naquela noite. Ele decidiu que fechar a boca, molhar os lábios e umedecer a garganta gelada eram as escolhas certas num primeiro momento. Então ele disse:
— Por que você fez isso? Por que… me parou?
O homem virou a cabeça para ele com um meio sorriso.
— Hoje é meu dia de folga. Eu não podia deixar você arruiná-lo.
Uma rajada de vento invadiu a sala como um caminhão atravessando uma parede. O rapaz cambaleou e esfregou o antebraço nos olhos. O homem, que também era a Morte, parava do lado de fora da janela.
— Ei! — chamou o rapaz.
O homem mirou-o através do vidro.
— Eu vou ver você novamente?
Os olhos cinza espremeram-se sobre um sorriso branco que atravessou o rosto do homem, branco como os raios causados por uma tempestade. Novamente, a voz não saiu da boca do homem, mas sim, de tudo o que havia.
— Mais uma vez, garoto. Uma única vez, e só.
E nada mais havia do outro lado, se não a noite escura e as estrelas que a maquiavam. O vento e a chuva haviam parado. A tempestade, também. Ao menos, por enquanto.
Mateus Feld
Revisão: Nicole Roth